domingo, 6 de dezembro de 2015

A taça partida

Mais uma taça de vinho se partiu ontem. Não quebrou, só trincou. Era um aviso de que aquelas taças, aos poucos, vão desaparecer. E fiquei refletindo o que isso significaria.

Essa taça faz parte de três que restam de um conjunto de seis. As outras se quebraram. Elas já têm uma idade avançada, mas fico pensando se têm histórias suficientes para contar. Eram da minha avó materna. Ela faleceu no dia 05 de dezembro de 2008. Tinha 79 anos. E, não sei ao certo, mas ela deve tê-las ganhado de casamento. O que me faz pensar que a idade dessas taças beira os 65 anos...

Hoje, vendo a taça partida, fiquei pensando o quanto minha avó deve tê-las usado. Ou, se, as usou. Lembro, quando era pequena, de visitá-la em sua casa e encontrar a cristaleira que hoje está na minha sala cheia de copos, garrafas coloridas e essas taças, pequenas, desenhadas com dourado. Mas a cristaleira sempre estava cheia de pó. E cheia de lembrancinhas de alunas dela.
A taça trincada na cristaleira da vó

Minha avó, mesmo sendo de uma personalidade difícil, teimosa, muitas vezes rancorosa, fazia um trabalho fantástico. Em um centro de assistência social ela dava a outras senhoras um sentido que ia além do de ser dona de casa ou mãe: ela as ensinava a costurar, a produzir roupas, a tricotar e a fazer crochê. Para aquela mulherada que muitas vezes era espancada pelos maridos, mas não via outra saída a não ser ficar em casa, ou as que sofriam por não ter ao certo com que alimentar os filhos, era uma visão de que as coisas podiam mudar. Elas ficavam muito agradecidas por todo o ensinamento, atenção, a possibilidade de independência financeira e auto-estima que aquelas aulas significavam.

Hoje fico pensando que, sem que eu tivesse consciência, minha avó pode ter sido o primeiro exemplo na família que puxou uma ação de empoderamento das mulheres. Mesmo sendo, em seus pensamentos e julgamentos, muito machista, reproduzindo muitos dos padrões de submissão feminina da época, ela, sem saber bem ao certo, dava ferramentas a muitas mães e donas de casa para serem independentes. Muitas delas viram o sentido profundo disso tudo e a agradeceram do jeito que podiam: fazendo bibelôs, pequenas lembranças. E minha avó guardava tudo na cristaleira. Mas deixava tudo lá, cristalizado, parado, pegando poeira.

Além disso havia o pensamento de que aquilo que era bom, chique, de melhor qualidade, deveria ser usado em dias especiais. Deveria ser guardado, preservado para que durasse mais, afinal, seria difícil repor. Não havia dinheiro.
Quando a vó adoeceu, a casa precisou ser reconstruída, houve um mutirão de limpeza para organizar e dar outro fim a tudo que ela tinha guardado. Ela ia morar com a minha mãe e cada um da família foi ver o que poderia ter como lembrança. Eu pedi à minha avó, com a anuência dos meus tios, a sala de jantar. E trouxe para minha casa a mesa, o balcão e a cristaleira com os cristais. Tudo tem um grande significado porque foi testemunha de praticamente a vida toda dos meus avós.

Mas eu também tive que tomar a decisão sobre preservar as coisas ou usá-las.  E, muito cedo, aprendi que coisas foram feitas para serem usadas e pessoas para serem preservadas. Assim, tudo o que estava na cristaleira foi sendo usado desde que está na minha casa, há mais de 10 anos. Inclusive as taças de vinho. Pequenas, com detalhes dourados. No uso, algumas se quebraram. E com a quarta trincando, penso que logo elas vão desaparecer como tudo, nos cacos da vida.


Não me arrependo.Essas taças poderão ecoar conversas alegres e festivas ou noites de reflexão solitária vindas da minha casa. Não da casa da minha avó, onde elas ficaram por quase 50 anos intactas, mas sem servir ao seu propósito de conter os líquidos que embalam os dias e noites memoráveis. Uma coisa é certa: essas taças se eternizarão em muitas memórias de dias especiais da minha vida. E, em algumas fotos, quando alguém se lembrou de tirá-las.

2 Comentários:

Anonymous Rosana Zucolo disse...

Que lindo, Nivea!!! Sua avó deve ter sido especial para se desfazer das coisas ainda em vida. Isso nunca é fácil, ao menos para a maioria das pessoas.
No tocante às taças, procure o pessoal que conhece as tradições japonesas. Sei que eles usam ouro no reparo das fissuras e as peças se perpetuam! Ou ganham mais anos! Não sei se vale para o cristal!
http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=29075

7.12.15  
Blogger Dna. Bona disse...

Oi Rooo, ah eu estou na vibe de me desfazer das coisas já. Menos bagagem pra vida, please! Mas minha vó teve que se desfazer pq a casa estava sendo reconstruída e não pq ela queria. Ela era muito apegada as coisas, por isso, pedir permissão para ela me deu um alívio e tanto. As coisas estão aqui em casa porque ela quis.
Que fantástico esse link sobre os consertos com pó de ouro! Vou me informar.
Beijaaaa

20.12.15  

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