INOCÊNCIA

Não consigo me desvencilhar da cena. Está gravada. "Site" é o nome do menino negro e franzino que pedira água e comida na casa da vizinha. Não tem mais do que oito anos. Usa camisa vermelha, bermuda preta, um roto chinelo de dedo e carrega uma sacola de plástico branca. Fiquei observando enquanto ele tomava a água que lhe fora alcançada por entre as grades amarelas do enorme portão de ferro. Jogou fora o resto que não conseguiu beber e, por alguns minutos, tentou devolver o copo para o outro lado. Braços curtos, não alcançavam a altura suficiente para segurar malabaristicamente o copo entre uma mão e a outra. Desiste. Não quer quebrá-lo. Há um vão debaixo do portão. Analisa se o copo passaria por ali. Agacha-se para colocar, mas desiste com a chegada do cachorro manso e desconhecido que vem cheirá-lo. Senta na calçada e fica aguardando a dona da casa voltar de dentro dela. Nisso, um outro menino, menor do que ele, sai de dentro da casa, e corre feliz até a grade. Traz na mão um boneco Shrek que coloca em pé na base do portão. - Vamos brincar? Site estica-se novamente até alcançar o vão da grade, com o copo na mão. O menino do outro lado, beirando uns cinco anos, também estica-se o que pode e apanha o copo, logo abandonado num canto. Os dois sentam no chão, um de cada lado do portão, e conversam animadamente sobre o boneco - grande demais para passar pelo vão. Site segura o boneco por entre os ferros, num riso solto. A mulher da casa volta com um prato de comida. Pergunta o nome dele e se consegue levar sem derrubar. - Estou acostumado. Não se preocupe. Muito obrigada. Me chamo Site. -Site?! -É Site. Tchau! Sai, cuidadoso com a preciosa carga, andando um ritmo lento. -Volta depois pra gente brincar!...ouve o menino branco dizer. Fico a observar aqueles dois tão diferentes e tão iguais. Poderia ser tão mais simples, tão mais justo!